Especial Jubileu 350 anos: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil 1l5f59

- 350 anos da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil
- Apresentação do Projeto Especial
- Frei Pedro Palácios: história, vida e devoção na vila do Espírito Santo
350 anos da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil 3r615j
No vindouro mês de julho, exatamente no dia 15, movidos por reconhecimento e gratidão, iremos celebrar o Jubileu de Trezentos e Cinquenta (350) anos de criação da “Província Brasileira da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria da Região Meridional”. O texto, agora apresentado, inaugura uma série de registros que almejam trazer à memória e ao coração as escolhas e projetos, as conquistas e percalços, os sinais de fidelidade e também de debilidades que, desde o último quartel do século XVII até hoje, forjam a história dos irmãos que deram e continuam a dar vida a esta porção da Ordem dos Menores.
Os artigos versarão sobre a configuração desta Entidade nascida no ano de 1675, desmembrada que foi da Província de Santo Antônio do Brasil. A história dos pioneiros; a recordação do florescimento das vocações e consequente ampliação da presença dos irmãos para além da região litorânea do nosso país; a contribuição dos frades para o estabelecimento da identidade do Brasil como nação; a quase extinção da Província que antecedeu a vinda dos restauradores alemães; a ampliação do número de casas na região Sul e o estabelecimento de Paróquias e Santuários como meios privilegiados de anúncio e serviço do Evangelho; a inserção dos frades no mundo da Educação, da Comunicação; as antigas e novas formas de solidariedade com os empobrecidos; o ardor missionário, sempre presente e que há trinta e cinco anos nos levou às terras fecundadas pelo rio Kwanza; o cuidado com os jovens frades e o estabelecimento de Casas de Estudo e Formação, entre outros temas, merecerão abordagem e não pretendem servir para fomentar um comportamento ufanista ou laudatório intimista com pretensões de apenas exaltar as próprias virtudes. Os eventos que celebrarão o Jubileu serão um convite ao reconhecimento da generosidade, desapego e coragem dos primeiros frades, da criatividade e atenção aos sinais dos tempos dos que vieram depois, da necessidade de, continuamente, renovar nossa visão e, com ousadia e confiança, sonhar alvissareiras manhãs.
Excertos da Bula “Pastoralis Officii” 5r2bb
“O dever pastoral nos confiou, por disposição divina, o governo da Igreja Católica difundida pelo mundo inteiro. Este dever exorta-nos a que nos dediquemos ao governo e comando feliz e próspero dos fiéis de Cristo, que fugindo da agitação do mundo, buscaram refúgio na vida religiosa. Assim sendo, compete-nos também providenciar a criação de novas Províncias sempre que, sob a inspiração do Senhor, julgarmos que isto seja conveniente para a glória e progresso da Religião e para a salvação das almas, atendendo criteriosamente as circunstâncias dos lugares, pessoas e tempos” (cf. Bula de criação da Província).
“Dever Pastoral” é a expressão que inaugura a Bula expedida pelo Papa Clemente X que erigiu oficialmente a Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, no dia 15 de julho de 1675. Não há que se buscar exortações espirituais neste documento papal. Seu caráter formal, entretanto, não deixa de revelar alguns dons do Espírito que marcaram a identidade da Província criada. A nova Entidade se originou da Província de Santo Antônio do Brasil, que havia sido fundada dezoito anos antes (1657). Destaca-se, nesta época, a vigorosa expansão do espírito missionário franciscano. O movimento que fez com que um expressivo número de frades que, “fugindo da agitação do mundo, buscaram refúgio na vida religiosa”, vieram para as terras brasileiras pode ser observado noutras partes do globo. O desejo do martírio, a disposição para o testemunho do Evangelho, a liberdade para estar em casa em todos os lugares, sustentavam a experiência dos frades. Com convicção e destemor, a partir da sua pobreza e confiança, os missionários venciam obstáculos, superavam temores e avam a fazer penitência num lugar totalmente novo.
A Bula fundamenta a criação de novas Províncias mencionando a inspiração do Senhor, o conveniente juízo para “promover a glória e o progresso da religião e para a salvação das almas”, e o atendimento criterioso “dos lugares, pessoas e tempos”. A eclesialidade e o proveito pastoral, valores de ontem e de hoje, são tomados como referência para a criação da nova Província. Progresso da religião e salvação das almas podem ser tidos como o Plano de Evangelização adequado ao tempo em que a Província foi criada. O olhar atento aos lugares, pessoas e tempos é condição fundamental para que seja garantida a eficiência de qualquer atividade apostólica. A atenção aos sinais, aliás, é uma das atitudes reclamadas a todos os que ousam sondar o “Espírito do Senhor e sua santa operação”.
“Este nosso predecessor (papa Alexandre VII) separou-a da Província de Portugal, por vários motivos, como por exemplo, a longa distância, o grande número de frades e de conventos e outras condições, erigindo-a como Província separada (…) O Ministro Provincial e os Comissários Visitadores, designados pelos Ministros Gerais da Ordem para fazerem a visita canônica dos frades e dos conventos quase nunca conseguiam realizar a visita completa de toda a Província. Esta situação representava um grave prejuízo para a observância regular”.
Clemente X alude ao mesmo argumento citado na criação da própria Província de Santo Antônio. A longa distância separava os que deveriam orientar, visitar e promover a vida fraterna e apontar os caminhos da fidelidade ao Evangelho dos demais, e isso constituía uma ameaça à forma de vida franciscana. A criação de uma nova entidade, circunscrita à uma região menos extensa, poderia vir a favorecer a integração e a mútua ajuda. O compromisso de comunhão entre os irmãos, além da proximidade fraterna, sempre favoreceu o testemunho franciscano.
“Dado em Roma, em Santa Maria Maggiore, sob o anel do Pescador, em 15 de julho de 1675, sexto ano do nosso Pontificado”.
Entre as quatro Basílicas papais, São João do Latrão, São Paulo Extramuros, São Pedro e Santa Maria Maior, aquela que é a primeira igreja do Ocidente dedicada a Maria, em fins de abril deste ano, atraiu a atenção do mundo inteiro. Para obedecer a um pedido contido em seu Testamento, o corpo do Papa Francisco foi ali sepultado. O “papa do fim do mundo”, primeiro latino-americano a desempenhar a tarefa de ser o servidor de todos os católicos espalhados pelos quatro cantos do mundo, pautou seu pontificado a partir da inspiração e ideais de Francisco de Assis. A recente despedida do “papa franciscano” pôs em relevo o que poderia ser apenas um despretensioso detalhe da Bula de criação da Província. O documento foi assinado na mesma Basílica onde, como semente, o corpo do Papa Francisco foi depositado na terra. A Mãe da Igreja, a Mãe da Ordem dos Menores, que mereceu tanto carinho de Francisco de Assis e foi tão reverenciada pelo Francisco de Roma, a partir da Basílica que louva seu nome, interceda pela Província ali nascida. Ao recordar os 350 anos de criação da Província, agradecidamente, louvamos a bondade do Criador pela dádiva assinada pelo Papa Clemente X, em 1675, e nos comprometemos a zelar, reverentemente, com o legado deixado a nós pelo Papa Francisco.
A criação da Província, um breve resumo 3e3r2v
Da pena de Frei Clarêncio Neotti, podemos ter um resumo bastante objetivo dos registros históricos que narram a origem da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil: “No dia 13 de março de 1584 foi instituída a Custódia de Santo Antônio, filha de uma jovem Província portuguesa, também dedicada ao Santo de Lisboa e Pádua. Quando alcançou fundar 12 conventos, tornou-se Província (1657) e, no primeiro Capítulo que celebrou, desmembrou os conventos do Sul e os erigiu em Custódia (1659), com sede no Rio de Janeiro e lhe deu o nome de Imaculada Conceição. Com o aumento dos frades e criação de outros conventos, a custódia foi declarada Província, em 1675. As vocações eram numerosas. Mas a Coroa portuguesa pa como condição para reconhecer a Província que ela não asse de 200 religiosos. A Coroa tinha medo que os conventos, por sua cultura e liderança, se tornassem foco de apoio a movimentos separatistas. E exigira que o número de frades portugueses fosse sempre maior do que o de brasileiros. Em 1739, o Provincial conseguiu licença para elevar o número de religiosos a 350. O auge foi conseguido em 1761, quando alcançou o número de 481 frades. A Província teve membros famosos por sua santidade e ciência. Assim o irmão porteiro Frei Fabiano de Cristo (português), até hoje venerado no Convento Santo Antônio, no Rio de Janeiro; Frei Antônio de Sant’Ana Galvão, paulista de Guaratinguetá, sepultado no Mosteiro da Luz, em São Paulo e canonizado em 2007; Frei Francisco do Monte Alverne, o maior orador sacro brasileiro; Frei Francisco Sampaio, que escreveu a primeira Constituição do Brasil independente, promulgada por Dom Pedro I; Frei José Mariano Veloso, mineiro, de que se diz não se saber o que nele brilhava mais, se a ciência da Botânica, se a santidade seráfica. Um decreto imperial de 1855 proibiu definitivamente a recepção de noviços. Com isto, a Província entrou em inevitável declínio, chegando ao extremo de haver um único frade sobrevivente ao se proclamar a República, no dia 15 de novembro de 1889. A queda do Império e a consequente separação entre Igreja e Estado favoreceram a restauração” (1).
Expansão da Ordem Franciscana: Cempoala e Nhoesembé (Vera Cruz e Porto Seguro) 25574y
No mês de maio do ano ado (2024) a União das Conferências Franciscanas da América Latina (UCLAF) celebrou os Quinhentos (500) anos da chegada dos frades menores ao nosso Continente. A celebração havida na cidade de Vera Cruz, no México, recordava a chegada dos doze (12) missionários franciscanos, conhecidos como “Doze Apóstolos”, enviados pelo Governo Geral da Ordem para viver franciscanamente no “Novo Mundo”, continente assim tratado pelos que ignoravam a longeva e fecunda história construída pelos povos que, desde há muito, habitavam estas terras. A celebração jubilosa no México se deu nas proximidades da Solenidade de Pentecostes. Ao saudar a Ordem pela Solenidade litúrgica, o Ministro Geral aproveitou para mencionar o evento no México. Frei Masssimo Fusarelli destacou a relevância da data para toda a Ordem e identificou a chegada dos “Doze Apóstolos” como dom do Espírito Santo. Ele lembrou também a motivação que trouxera os frades até aqui: a liberdade do Espírito, alma de toda vocação missionária; para ele, o envio dos missionários foi uma verdadeira resposta ao dom do Espírito. O Ministro Geral disse ainda, “muitos frades navegaram para as Américas compelidos pelo desejo de viver e anunciar o Evangelho através de um forte impulso voltado para a reforma da vida franciscana e da Igreja para um mundo novo. Estes “Doze primeiros franciscanos” – e muitos dos frades que chegaram depois deles – vieram das correntes do reformismo espanhol da época. O ideal missionário destes frades nasceu num contexto de luta por um estilo de vida baseado em duas notas fundamentais: o radicalismo evangélico e o eremitismo contemplativo, no clima da liberdade do espírito que chama a viver o Evangelho”. Ao recordar a instrução dada pelo Ministro Geral que enviou os frades ao México, frei Francisco de los Ángeles Quiñones, frei Massimo ressalta a forma franciscana de ir pelo mundo, por sinal, válida até hoje: “Uma vez que ides plantar o Evangelho nos corações que ainda não o receberam, fazei-o de tal modo que a vossa maneira de viver não se desvie dele. E isso fareis se vigiardes diligentemente sobre a observância da Regra, que é fundada no Santo Evangelho, observando-o pura e simplesmente, sem glosas e dispensações” (2).
Sem ofender a comemoração no México, ainda no ano 2000, a Família Franciscana do Brasil promoveu grande mobilização para recordar que o primeiro traço do cristianismo na Terra de Santa Cruz deve ser creditado aos franciscanos. Quando falamos sobre a chegada das caravelas portuguesas ao “Nhoesembé”, em português “lugar dos pescadores” ou “lugar onde se pesca”, logo vem à memória a famosa tela de Victor Meirelles (1832-1903). O pintor, baseando-se no relato de Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, e inspirado pela obra do francês Horace Vernet (1789-1863) que anos antes havia retratado a “Primeira missa na Argélia”, identifica os participantes do solene ato com suas indumentárias próprias. Se nos atentarmos aos detalhes, tais como as tonsuras e as sandálias, o capuz que salta da casula do presidente da Eucaristia e da sobrepeliz de quem o assiste, a piedosa devoção de outros frades ladeando o improvisado altar, poderemos conferir o matiz franciscano do evento.
Os registros históricos nos dão conta de que, além do reconhecido frei Henrique de Coimbra e seus confrades registrados no quadro da Primeira Missa, muitos outros franciscanos, desde as primeiras horas, perambularam pelas terras do “Novo Mundo”. A denominação de localidades e tantos acidentes geográficos atestam que o burel franciscano esteve presente em muitos lugares desta nossa terra. Há um artigo de Frei Sando Roberto da Costa onde ele aborda o “Protagonismo dos Franciscanos na Evangelização do Brasil”. Frei Sandro relata a experiência missionária na atual cidade de Laguna – SC. Em 1537, a expedição que saiu da Espanha tendo como destino o atual Paraguai trazia cinco frades espanhóis. Não conseguindo entrar pelo Rio da Prata, foi parar em Laguna. Ao comentar a missão e presença franciscanas, frei Sandro afirma: “Os franciscanos em toda a América Latina, na sua atuação missionária, por onde aram deixaram sua marca, não só no anúncio e pregação, mas através de uma preocupação com a qualidade de vida do povo. No Brasil muitos fundaram cidades, construíram hospitais e escolas, ensinaram o povo a cultivar a terra. A preocupação não é apenas religiosa: é civilizatória, é “social”, como diríamos hoje” (3).
Movidos pelo Espírito 6n3l4d
Podemos então nos perguntar: Com que intuito navegadores e seus financiadores incluíam religiosos entre os tripulantes e marinheiros de suas armadas? Qual a motivação para que um pintor, trezentos anos depois, insira em uma obra encomendada para reforçar os mitos fundadores da história do país e reforçar a identidade de uma jovem nação, a figura de frades franciscanos? Tais perguntas e outras tantas a elas assemelhadas sustentam grandes debates e geram inúmeras interpretações. Sem desconsiderar a participação ativa das Ordens Religiosas nos processos de expansão do modelo de civilização europeu imposto às populações originais, parece-me oportuno considerar as motivações que, desde o início do Movimento Franciscano, fizeram da itinerância, da disposição para peregrinar e do desejo de fazer-se viandante, características marcantes da identidade franciscana.
Ao comentar as motivações que trouxeram os “Doze Apóstolos” ao México, como já mencionado acima, frei Massimo Fusarelli cita algumas posturas que, mutatis mutandis, também podem ser atribuídas aos frades que vieram ao Brasil: “três elementos são muito claros, vida exemplar, trabalho de conversão e desejo de martírio. Para o Ministro Geral, a prioridade na missão é a forma de vida. Estas características estão presentes desde as origens da Ordem. Ao longo dos séculos, as circunstâncias culturais em que os projetos missionários foram formados mudaram, mas os elementos mencionados acima estão sempre presentes”.
Ao ler esses sinais históricos podemos afirmar que, despida das camadas que interesses outros possam ter sido agregadas a ela, a disposição que fez os frades de ontem atravessar o oceano e fixar morada nesta nossa terra foi sustentada, sem sombras de dúvidas, pelo legítimo desejo de traduzir em opções e gestos seu compromisso com o pedido do Ressuscitado: “Ide por todo mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15).
Olhos fixos no que virá 2y3l2
Ao inaugurar o tempo do Jubileu dos 350 anos de criação da Província, quisera partilhar as provocações da Irmã Liliana Franco Echeverry, presidenta da Conferência Latino-americana dos Religiosos e Religiosas (CLAR). Na já mencionada comemoração dos 500 anos da chegada dos irmãos menores ao México, ela teve oportunidade de falar sobre “Os desafios da vida religiosa para a América Latina, a partir da sinodalidade”. A irmã convidou-nos a ver a missão a partir do compromisso com a sinodalidade: A grande missão é ajudar a construir o ‘nós’ que quer a conversão. Ela provocou os frades a revelar em si mesmos, em seus projetos e opções, o rosto de Francisco, de Clara e o cheiro do Evangelho na vida. Ela também disse que “é urgente uma conversão pastoral em chave missionária para tornar possível o “nós eclesial”, transcendendo a singularidade para viver no dom da pluralidade”. Pediu aos frades uma renovação da ação missionária franciscana a partir de uma relação pessoal com Deus, de uma verdadeira vida fraterna, de uma sobriedade de vida e amor aos pobres; pediu que, com liberdade e confiança, nos deixemos levar pelo Espírito e seu santo modo de operar.
Além da configuração de respostas aos desafios apresentados pela irmã Liliana, que o Jubileu Provincial nos torne mais atentos à urgência de marcar nossos projetos evangelizadores com o matiz dos valores da Justiça, da Paz e Integridade da Criação. A celebração dos 350 anos da Província possa também revigorar em nós a convicção de que os pobres são nossos mestres e, por isso, nossa identidade e a fecundidade da nossa opção evangélica será alcançada se ao lado deles estivermos.
Francisco de Assis, que inaugurou o caminho, continue a nos inspirar; seu exemplo e a clareza de suas opções nos habilite a seguir perseguindo a teimosa utopia da fraternidade. Maria Santíssima, nossa Mãe e Padroeira, na sua Imaculada Conceição, interceda por nós e faça fecundo nosso Sim.
Para o louvor de Cristo. Amém.
Frei Paulo Roberto Pereira, Ministro provincial
Apresentação do Projeto Especial
Toda história bem contada gera frutos para o futuro, assim como perpetua a existência de pessoas e situações que ajudaram a compor um conjunto de elementos que dão forma à missão de contribuir com as marcas deixadas pela humanidade.
Desde a pré-história, o homem já tinha a necessidade de deixar suas marcas nas paredes das cavernas como forma de registrar suas impressões e interpretações sobre os fatos daquele momento, bem como os impactos gerados pelos acontecimentos que viveu.
Intencionalmente ou não, sempre sentimos a necessidade de nos expressar para revelar a outros a forma de ver e sentir o mundo e nossas realidades. Recortes que contam histórias e eternizam o ado para que possamos compreender o presente.
Do período Paleolítico para cá, muita coisa mudou, especialmente nas formas como registramos os fatos. Temos inúmeros recursos para isso, e as tecnologias são pontes fundamentais nesse processo. No entanto, a figura humana continua sendo fundamental, pois somos nós que damos o tom, nós que sentimos, vivemos e temos a necessidade de continuar partilhando fatos da nossa trajetória e do compromisso que assumimos em nossa Casa Comum.
Neste ano em que a Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil inicia seu Jubileu dos 350 anos de história, também assumimos o compromisso de registrar a caminhada dos frades dessa grande fraternidade, presente em cinco estados brasileiros e também em Angola.
Estamos além das paredes das cavernas, mas marcamos nossa história nas paredes da vida de tantos espaços por onde amos e estamos desde a nossa chegada ao Brasil e o nascimento desta Província, em 1675.
A partir de agora, traremos a você uma série de textos sobre a Província, que serão disponibilizados gradativamente nesta publicação especial, para que você possa conhecer a nossa história, a partir do olhar dos frades franciscanos, aqueles que ajudam a compor a história da nossa existência. Mas os autores de toda essa história são todas as milhares de pessoas, ou quem sabe, milhões, que nesses 350 anos escreveram uma história corajosa e única, a da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil!
Adriana Rabelo Rodrigues
Frei Pedro Palácios: história, vida e devoção na vila do Espírito Santo
Bem antes da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil ser criada canonicamente, já existia na Vila do Espírito Santo, até então capitania hereditária portuguesa lá pelos idos anos de 1558, a presença dos frades menores naquelas terras. Quem deixara fortes marcas fora o frade espanhol Frei Pedro Palácios. Cuja história feita entre os capixabas nos lega a grandiosa devoção à Nossa Senhora das Alegrias, a Virgem da Penha e os inícios da missão da Ordem dos Menores naquelas localidades de nosso território provincial. Por isso, neste Tempo Jubila de 350 anos de nossa Província devemos, com grande razão e alegria, fazer memória e exaltar as virtudes deste frade que deu sua contribuição para a edificação desta porção de nossa presença.
Dos Biógrafos de Palácios 59b5s
Pouco se sabe da origem de Frei Pedro Palácios. Os testemunhos de sua ida para o Espírito Santo são basicamente de três fontes, a saber: Frei Apolinário da Conceição datada de 1733 e Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão de 1761, ambos historiadores de grande relevância para o conhecimento da história franciscana na Igreja do Brasil Colonial, e uma carta do santo jesuíta Padre José de Anchieta, que nos fornece uma informação sobre a missão que que o ermitão desenvolvia, no ano de 1572.
Os escritos de Frei Apolinário da Conceição não são dotados de grandes detalhes sobre a vida de Frei Pedro Palácios, talvez este não seja o foco de sua escrita. Porém, as informações ali descritas dão veracidade para as benfeitorias que realizou na Capitania do Espírito Santo e a difusão do culto e veneração para com a Virgem das Alegrias.
Já os escritos de Frei Jaboatão que relatam a origem de Frei Pedro Palácios ocupam três capítulos de sua obra. O Frade historiador tem uma grande preocupação em atestar os fatos da vida de Palácios, tais como: sua origem familiar, sua entrada na Arrábida de Portugal, toda a sua jornada antes da chegada na Capitania do Espírito Santo, sua vida de penitência, a irradiação da devoção a Nossa Senhora das Alegrias, a construção da capelinha de São Francisco de Assis e da construção da ermida da Penha. E por fim, relata os últimos dias de sua vida. Um detalhe que vale destaque é que Jaboatão se utiliza de depoimentos de pessoas que conviveram com Frei Pedro Palácios.
Um outro relato biográfico que se tem notícia de Frei Pedro Palácios é a Carta de São José de Anchieta a seu superior Jesuíta, e nela tem-se a clareza da situação geográfica que Palácios encontrou quando aportou em Vila Velha. Temos, por exemplo, a informação de que havia dois povoados com meia légua por mar de distância um do outro naquela nascente Vila. É neste contexto que se insere Palácios com seus sonhos e sede de evangelização. Percebe-se que em sua carta Anchieta demonstra a real intenção de Palácios para a sua missão: salvar as almas.
De sua vida e chegada à Capitania do Espírito Santo 2n6f39
Frei Basílio Röwer afirma que Pedro Palácios nasceu em “Medina do Rio Sêco, perto de Salamanca”. De natureza nobre, sentiu-se atraído pelo modo de vida simples e humilde dos frades franciscanos, e assim recebeu o hábito de São Francisco na Província São José de Castela, ainda na Espanha. Vale ressaltar que Pedro Palácios adentrou a uma província reformada e de estrita observância de São Pedro de Alcântara[1], uma característica deste ramo da Ordem Franciscana é a vivência em eremitérios.
Olhando para seus dados biográficos, salta-nos à vista duas características próprias da atuação de Pedro Palácios que são o “amor e caridade”. Estes traços ficavam evidentes no seu atendimento aos doentes dos hospitais, ainda quando servia em Lisboa-Portugal. Evidencia-se que a vida do frade emana carinho, atenção e cuidado para com os mais necessitados, testemunhando o carisma franciscano, que ele viveu até os seus últimos dias.
Uma informação que vale destaque é que Pedro Palácios adota o estilo eremítico, que era uma possibilidade na Ordem Franciscana: um exemplo é São Benedito que viveu essa experiência. Tratava-se de um estilo próprio das reformas franciscanas surgidas no século XIV-XV. Não se pode esquecer que Francisco de Assis escreveu uma Regra para os eremitérios; nela encontra-se: “Aqueles que querem viver religiosamente em eremitérios sejam três irmãos ou no máximo quatro. […] e tenham um claustro em que cada um tenha sua pequena cela para rezar e dormir. E rezem sempre […]”.
Porém, ao longo da história, este estilo cai em desuso: para Francisco, mesmo nos eremitérios, vivia-se em fraternidade: nunca um frade sozinho, mas ao menos dois ou três. Palácios vive num período da história franciscana quando isso ainda era comum. Porém, na Capitania e, como em todo o Brasil, ainda não havia uma presença efetiva dos franciscanos a não ser com Palácios. Mas esta regra era o seu modelo de vida no seguimento de São Francisco de Assis. Tanto que a estrutura da construção do Convento da Penha é de um eremitério, aí está a raiz daquela construção.
Desta forma, a sede de Palácios era a nobreza do serviço. Servir ao Senhor e ao seu Reino era o que impulsionava seu desejo de apostolar noutras terras. A mão de Deus o conduziu ao pequeno povoado de Vila Velha. Mal imaginava ele que o seu testemunho e a sua cara devoção, às Alegrias de Nossa Senhora, gerariam tanto impacto na religiosidade e na fé de incontáveis fiéis até hoje.
O religioso Franciscano aportou em Vila Velha do Espírito Santo no ano de “1558”. Vale ressaltar a diferença da pequena vila daqueles tempos para a cidade que se tornou ao longo dos séculos. No século XVI, não imaginamos a cidade de hoje, mas, sim, alguns pequenos casebres, lares de pequenas famílias de colonizadores e que vinham com pouca coisa para o “Novo Mundo”. O povo da terra, os indígenas, ainda nesse século possuíam a maior parte de suas aldeias ainda intactas, com ocorrência delas em todo litoral, e nas margens dos rios.
Certo é que nem todos os moradores da velha vila abandonaram suas casas e ocupações. Alguns, por nutrirem alguma proximidade com os indígenas não tiveram dificuldades de permanecerem e dos povos da terra de os tolerarem. Assim, Palácios encontrava na pequena vila, abandonada por uns, e habitada por outros poucos o lugar de sua morada e presença no meio do povo como sinal da bênção de Deus.
Impressiona em todos os manuscritos e relatos sobre a vida de Frei Pedro Palácios que o vigor missionário é um sentido de realização vocacional que ele buscava viver. Salvaguardando sempre a intenção de salvar as almas. Estes dois desejos fazem parte de sua “bagagem” que alimentaram sua vinda para o Brasil. Vale destaque, que Palácios não pertencia ao estado clerical. Porém, o apóstolo capixaba, merece reconhecimento por seus serviços aos mais necessitados.
Anchieta escreve que depois de ter aportado na Vila, foram procurá-lo e o encontrá-lo em uma gruta de duas fendas no sopé do que é conhecido hoje como morro da Penha. Neste pequeno detalhe da vida de Frei Pedro Palácios, percebe-se, o quão simples e humilde era e quão grande era seu desejo e ardor pela vida Evangélica. Embarcou no navio de incertezas, quando decidiu vir para o Brasil, não lhe havia nem lugar para habitar, os franciscanos também não possuíam nenhuma missão nestas terras naquela época, somente havia uma comunidade de Jesuítas.
Existe até hoje, no frontal da gruta de Frei Pedro Palácios uma indicação, contendo a informação da primeira morada do santo frade, datada de 1864. A morada humilde do ermitão é símbolo até nossos dias do vigor missionário franciscano, que fez da pequena Vila o lugar onde a mãe de Deus quis fazer morada.
O único relato existente que afirma sobre a habitação de Palácios na Vila, deve-se a Frei Teotônio de S. Humiliana, inscrito no livro tombo do Convento da Penha, que, infelizmente, perdeu-se no decorrer da história. Neste relato havia uma indicação de uma lápide, esta lápide está até hoje pregada na entrada da pequena gruta, destacando as virtudes do frade e enfatizando sua devoção à Mãe de Deus e a construção da ermida no cume do morro da Penha.
A devoção de Palácios em terras Capixabas 2d4yd
Aportando em sua terra missionária, Palácios trouxe consigo uma estampa de Nossa Senhora das Alegrias e a devoção mariana logo tomou espaço na vida dos habitantes da Vila. Todos os dias Frei Pedro colocava seu de nossa Senhora para ser contemplado e levava as pessoas à oração piedosa de súplica à Virgem. Construiu ao lado de sua gruta um pequeno oratório para guardar seu precioso quadro. A vida de Palácios era conduzir as pessoas para o caminho da salvação. Essa era sua meta, não importando se eram crianças ou adultos, suas pregações eram geradoras de salvação.
A humildade de Palácios era tanta que morou naquela pequena gruta por seis anos, negando qualquer tipo de melhor conforto que lhe oferecessem. Desta forma, três pensamentos ficam evidentes na vida de Palácios: a radicalidade no seguimento de Jesus Cristo, proveniente de sua consagração na Ordem dos Menores, o desejo honesto de levar todos para o céu e a intercessão de Maria na vida humana. Assim, o sentimento religioso crescia em torno a Frei Pedro e a devoção à Senhora Santa começava a contagiar os corações daqueles que o próprio Palácios batizava, confortava as almas e ensinava a religião.
Frei Pedro Palácios sonhava com uma festa dedicada à Virgem das Alegrias. Seu sonho se realizou pouco antes de sua morte, e hoje depois de mais de quatrocentos e cinquenta e cinco anos da realização da primeira festa podemos perceber uma evolução, ou até mesmo, uma atualização da maneira de prestar o culto à Virgem.
Nossa Província da Imaculada tem um legado frutuoso e precioso nas mãos, guardamos a piedade e devoção de milhões de capixabas. Fruto do vigor missionário de um confrade destemido e corajoso. Que a vida e missão de Frei Pedro Palácios possa inspirar nossa evangelização e vocação.
[1]Frei Pedro Palácios é citado muitas vezes como sendo “frade dos capuchos”. Isso se deve porque o hábito da reforma alcantarina, ramo pertencente à Ordem dos Frades Menores Observantes, tinha por característica o capuz mais longo que pendia nas costas. Ao longo da história, essa citação causou equívocos, quando se identificava, nessas palavras, Frei Palácios como membro da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos. A título de exemplo, temos o referido equívoco cometido por quem redigiu a homilia do Papa João Paulo II quando, em sua visita a Vitória, acabou dizendo: “Aqui viveu, na mesma época, o homem de Deus, frei Pedro Palácios, o virtuoso irmão leigo capuchinho, catequista e eremita, cuja ermida branca, no alto do rochedo, é hoje o Santuário de Nossa Senhora da Penha, padroeira deste Estado. (JOÃO PAULO II, 1991)”.
Frei Felipe Carretta, OFM
Bibliografia:
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CONCEIÇAÕ, Apollinario da. Primazia Serafica na regiam da America, Novo descobrimento de santos e veneraveis religiosos da ordem Serafica que ennobrecem o Novo Mundo com suas virtudes e acçoens. Lisboa Occidental: Na Officina de Antonio de Sousa da Sylva, 1733.
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JOÃO PAULO II, Papa. Homilia do Santo Padre durante a celebração da Santa Missa para os fiéis da Arquidiocese de Vitória. (19 de outubro de 1991). Disponível em: <https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/homilies/1991/documents/hf_jp ii_hom_19911019_vitoria.html>
RÖWER, Basílio; SETARO, Alfredo W. O convento de N. S. da Penha do Espírito
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WILLEKE, Frei Venâncio. Antologia do Convento Da Penha. Vitória: Editora Versal,
1974.